Marie Anne Najm Chalita, pesquisadora científica do Instituto de Pesca, Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, outubro 2015
O mercado do pescado é caracterizado como ‘mercado contestado’. Ele se estrutura concomitantemente sobre objetivos de preservação da biodiversidade e sobre disputas em torno da exploração dos recursos pesqueiros. O bem transacionado é natural - não excludente e rival -, e mobiliza direitos de propriedade públicos tanto nas águas marinhas quanto nas continentais. Os processos de coordenação que buscam atentar para uma relativa e necessária homologia entre produção e consumo esbarram, desta maneira, em uma série de falhas, isto é, demonstram-se incapazes de distribuir recursos de maneira eficiente.
O Estado, através de sua função alocativa dos recursos, intervém diretamente no processo produtivo - ofertando o bem através da legislação e das políticas públicas, visando evitar ou minimizar o efeito da pesca predatória. Dados os limites da capacidade de suporte e pressão sobre a biodiversidade da pesca extrativista, a aquicultura vem sendo incentivada como forma de criar economia de escala. Entretanto, a não ser em condições muito especiais e altamente regulamentadas, o cultivo resulta em impactos ambientais de diferentes graus e enfrenta a falta de pacotes tecnológicos para espécies nativas.
Dado o contexto de informações imperfeitas no qual ocorre a atividade pesqueira, princípios da precaução são preferencialmente defendidos no intuito de minimizar os riscos das atividades. Seus dispositivos de qualidade que operam neste mercado são incipientes em razão da existência de distintas esferas de decisão governamental com atribuições e metas distintas, resultando em uma dominância daqueles de natureza sanitária.
Duas posições opostas concorrem entre si como opções na gestão sustentável dos recursos pesqueiros. Uma mais conservadora via mecanismos de controle e comando que se resume na legislação e outras normas definidoras dos usos e acessos ao pescado. E a outra opção é a via preço, a qual demanda uma arbitragem intertemporal para que a viabilização das trocas econômicas que se deem no presente possibilite revendê-los no futuro a um preço maior. Ambas enfrentam dificuldades como a ação individual dos agentes, o rumo e ritmo indeterminados do progresso técnico e o desconhecimento da real dimensão dos estoques na natureza, além das dificuldades de fiscalização. O preço final arbitrado é definido, portanto, dominantemente pelo seu custo de obtenção, que é formado por dois componentes: o custo de cultivo ou extração e o custo de descoberta, sempre dependendo das incertezas quanto às complexas interações ecológicas que ocorrem nos ecossistemas e às disputas sociais e econômicas pelos mesmos.
A difícil equação entre produção e preservação depara-se, ao mesmo tempo em que corroboram, com um elevado grau de informalidade nas transações do mercado: dificuldades de integração vertical dos agentes econômicos (pescadores, armadores, indústrias, intermediários e varejistas), resultando em uma dominância de operações no mercado spot, sem estabelecer relações contratuais estáveis. A diminuição dos estoques e, em consequência, da produção é que gera desestímulo ao esforço de pesca. Recompondo-se os estoques, dá-se nova elevação da atividade pesqueira. Os ciclos econômicos da produção e os investimentos financeiros em algumas artes de pesca mais específicas e seletivas podem encerrar-se no prazo de uma geração, caracterizando abandono da atividade.
O peso destes constrangimentos estruturais e naturais pode ser observado ao analisar-se o consumo do pescado no Brasil por ser afetado diretamente não apenas pela oferta restrita do alimento como, também, pelo fato de que o consumo de um indivíduo diminui o estoque disponível para os outros e pelos entraves na definição da qualidade do mesmo, uma vez que suas características exógenas e endógenas são pouco conhecidas, o que intensifica a fragilidade das trocas econômicas no mercado.
O baixo consumo de pescado per capita decorre da baixa aquisição a nível familiar e não do baixo consumo per capita. Há redução da quantidade demandada de pescado quando o preço deste produto eleva-se e há aumento de seu consumo quando a renda disponível para a aquisição de proteína animal eleva-se. O aumento na demanda de pescado sempre ocorre quando há um aumento no preço de um dos todos os bens substitutos (carne bovina, suína, aves, ovos e leite). O consumidor brasileiro é, portanto, mais sensível a variações positivas na renda para o aumento do consumo de pescado do que para variações negativas, ou redução, no preço do pescado.
Observam-se contrastes regionais na quantidade total consumida no país, onde a região Norte responde por uma taxa de consumo muito superior às regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste. As menores faixas de renda consumidoras de pescado localizam-se nas regiões Norte e Nordeste. Em termos relativos, no entanto, faixas de renda maiores consomem mais pescado e a preços mais elevados que, no entanto, englobam apenas 10% da população brasileira, concentrada no Sul e Sudeste.
Estes elementos gerais indicam que, apesar da falta de hábito do brasileiro no consumo de pescado, a despeito de nas regiões Norte e Nordeste ser determinante a disponibilidade e proximidade do pescado, nas regiões Sudeste e Sul, maiores consumidoras, a elevação/restrição do consumo vai depender crescentemente de negociações entre razão econômica e razão preservacionista.
Frente ao questionamento que o mercado contestado do pescado impõe à ciência econômica, principalmente quanto à necessária demarcação e fortalecimento da esfera pública, qualquer movimento de transferência da responsabilidade da atividade regulatória do Estado para o mercado, através de mecanismos de autorregulação, e do Estado e do mercado para o cidadão, o consumo deste alimento deve necessariamente ser qualificado sob o risco de não representar solução para os problemas estruturais atuais. Em que pese a crescente participação da oferta do alimento importado, é nesta linha que uma solução apontada para estes conflitos estruturais entre recursos naturais e desempenho econômico vem sendo enfatizada: a segmentação em valor agregado baseada, de um lado, no beneficiamento e diversificação de alternativas de processamento industrial de poucas espécies a partir da criação de produtos mais elaborados ou pré-prontos e, de outro, na formação de um mercado de nichos do produto mais diversificado em espécies e in natura, com a implementação de processos de certificação socio-ambiental. Para alcançar estes objetivos, o pescado como bem não excludente e não rival deveria, em tese, passar a ser considerado nos instrumentos jurídicos que implicam na natureza das políticas públicas e nas dinâmicas econômicas como excludente e rival.
• Para saber mais sobre o assunto, consulte o link:
Fonte: www.pesca.sp.gov.br
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